Pesquisa mostra que 90% dos transexuais e transgêneros recorrem à prostituição no Brasil por preconceito e consequente falta de oportunidades
Quinta-feira, 04 de Fevereiro de 2021
André Moraes
Maria Fernanda da Cunha tem 32 anos e há dois anos conseguiu um emprego com carteira assinada. Antes disso, ficou por quatro anos vivendo na informalidade. Utilizou seus dons na cozinha para fazer doces, que foram sua única fonte de renda nesses anos desempregada. Maria Fernanda acredita que o motivo do tempo sem um emprego seria a sua identidade, que se transformou quando tinha 24 anos.
Ela já percebia, desde a adolescência, que era diferente dos outros meninos. "Foi um caminho longo até eu perceber que me identificava com o gênero feminino. Quando tinha 23 anos, me montei de drag queen e entendi que era aquilo que eu queria. Bom, não bem aquilo, porque não queria me desmontar nunca mais", declara. Ela começou os tratamentos hormonais e estéticos, para se tornar cada vez mais o que ela realmente é: uma mulher.
Porém isso fez com que surgissem dificuldades em sua vida, principalmente na parte profissional. "Eu percebia, nas entrevistas, que quando notavam que eu sou uma mulher trans, o foco ia todo para minha vida pessoal. Ninguém mais olhava para meu currículo, que é bom, pois trabalhei em indústria antes de transicionar", afirma.
O emprego atual, numa rede de cosméticos que possui loja em um shopping de Sorocaba, foi conquistado pela ajuda de Thara Wells, presidenta da Associação Transgênero de Sorocaba (ATS). "Ela me mandou uma mensagem e me perguntou se estava em busca de emprego. Disse logo que sim e ela me passou o contato da empresa, que estava procurando por meninas trans. Fiz a entrevista, eles me respeitaram muito na conversa, e consegui o emprego", conta Maria Fernanda, com muita felicidade.
Maria Fernanda (arquivo pessoal)
Desigualdade escancarada Apesar de Maria Fernanda ter conquistado uma história feliz no mercado de trabalho, infelizmente essa não é a realidade da grande maioria das pessoas trans no Brasil. Um estudo feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) revela que 90% das pessoas trans recorrem à prostituição, pelo menos em algum momento da vida. Os motivos: falta de oportunidades e, principalmente, preconceito.
A presidenta da Antra, Keila Simpson, relata que a prostituição ainda é a primeira forma de conseguir renda para as pessoas trans. "É a primeira porta que se abre para elas."
Mas, se trouxermos essa estatística para a realidade de Sorocaba, Thara Wells, presidenta da ATS, revela que o número é ainda maior. Segundo ela, por volta de 95% das pessoas trans entram no mercado informal do sexo para conseguir sobreviver. "E prostituição não é garantia de sustento, não! O dinheiro que elas ganham é pouco. E me preocupa muito isso, pois são pessoas que estão vulneráveis a pegar ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), expostas à violência e também ao coronavírus, pois muitos clientes não querem pegar uma menina trans na rua que esteja de máscara", revela.
Thara Wells, presidenta da ATS (arquivo pessoal)
Visibilidade Durante o mês de janeiro é comemorado o Mês de Visibilidade Trans. Em Sorocaba, a ATS criou uma programação especial, que envolveu lives pelas redes sociais sobre temas pertinentes a essa comunidade, além de ações com profissionais de saúde da rede pública, para capacitá-los a oferecer um atendimento mais humanizado à população trans.
A empregabilidade entre as pessoas dessa comunidade foi uma das bandeiras levantadas pela associação, devido à urgência de se estabelecer melhores condições para que os homens e mulheres transexuais e transgêneros possam acessar o mercado de trabalho.
"Quando as empresas falam de diversidade, elas não necessariamente acolhem as pessoas trans. Se reparar, a maioria das pessoas LGBT que estão empregadas em grandes empresas são pessoas lésbicas, gays e bissexuais. Não se vê aquela trans já binária, com silicone e aspectos femininos, por exemplo. E onde estão essas pessoas? Na prostituição. Tem um morde e assopra. Dizem que querem, mas colocam empecilhos, como exigência de cursos, que não é a realidade da maior parte das pessoas trans", relata.
Inclusão Atualmente a educação é um dos gargalos que influenciam nesse processo. Segundo um estudo de 2017, da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (RedeTrans), 82% das mulheres trans abandonam a escola entre os 14 e 18 anos. O bullying e a falta de entendimento da população sobre a transexualidade são fatores que empurram essas pessoas para fora dos portões das escolas.
Thara explica que essa evasão escolar já parte da não aceitação da própria família, que acaba colocando a pessoa trans para fora de casa. "Aí chega na rua, não tem estrutura nenhuma, acaba caindo na prostituição. Os abrigos não ajudam também, pois acolhem de acordo com a genitália. Imagine uma mulher trans tendo que usar o vestiário masculino desses lugares", afirma.
Para a presidente da ATS, a luta precisa continuar no sentido de as pessoas buscarem por informação, perdendo o seu preconceito e percebendo que as pessoas trans são gente como a gente. "Se quiser saber mais sobre transexualidade, joga no Google, faz uma pesquisa. Eu falo sobre o tema de empregabilidade desde 2008 e parece que nada mudou. Ficamos nessa política maquiada de ‘diversidade'. Se quer contratar uma pessoa trans, dê o suporte, acolha essa pessoa da forma que ela merece. As pessoas poderiam facilitar se não houvesse tanto preconceito."
André Moraes (@andrechandemoraes) é jornalista, pós-graduado em Artes Cênicas e terapeuta xamânico. Escrever e ajudar as pessoas estão entre as suas maiores paixões na vida.
Fonte: Portal Mandala
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